domingo, 14 de fevereiro de 2021

Piracicaba: "O judô foi a ferramenta que a vida me deu para ajudar a formar boas pessoas" - sensei Beninho Mattos

Após 55 anos de história no judô, sensei Beninho Mattos coloca ponto final na trajetória: 'Preciso viver mais para minha família'

“Hoje, sou faixa coral. Como referência, é equivalente ao 6º dan, mas em vez de usar a preta, uso uma faixa vermelha e branca. No judô, quem recebe essa faixa leva o nome de kodansha. Minha história com o tatame começou há 55 anos. Bastante tempo, uma vida. Na época, em Piracicaba, havia um senhor, o seu Washington Rizzi, que tinha um estacionamento na rua XV de Novembro. De noite, ele aproveitava uma parte coberta para dar aulas de judô. Mas só os adultos podiam participar. Eu, com 10 anos, ficava na vontade. Comecei quando veio para cá o sensei João Gonçalves, que era conhecido como Peixinho, e que teve uma baita história no esporte. Ele participou de sete Olimpíadas! Em duas, foi como nadador (1952 e 1956). Em três, como jogador de polo aquático (1960, 1964, 1968). E teve mais duas que ele participou como técnico da seleção brasileira judô (1992 e 1996). O cara era fera.

Junto com o Peixinho, chegaram o Luiz Carlos e o Paulo Roberto Mubarac. Eles davam aulas na mesma academia, que com o tempo passou por fases de transição: primeiro se chamava Academia Gonçalves; depois, Academia Gonçalves Mubarac; e finalmente, virou Academia Mubarac. O Peixinho, na época, era o técnico de Piracicaba nos Jogos Regionais. Eu já gostava muito das lutas e admirava a filosofia do judô. Bem, na verdade eu gostava mesmo era das regras, ainda não entendia o que era ‘filosofia’. Aquilo me encantou e fui observando os senseis. Criança, já começava a despertar o sonho de um dia ser faixa preta. Decidi sonhar.

Eu adorava os treinos. Quando completei meus 15 anos, atingi a idade mínima para participar dos Jogos Regionais. Era leve e, modéstia a parte, lutava muito bem, tanto que entrei direto na equipe adulta, mesmo sendo juvenil. Fomos muito bem nas competições e lembro que chegamos a conquistar o título de campeão dos Jogos Abertos do Interior no judô, por equipes. Também ganhei os Jogos Regionais e o Troféu Bandeirantes. O campeonato mais difícil era o Paulista. Naquela época, havia uma diferença grande de nível entre o judô da capital e judô praticado no interior. Eu chegava entre os finalistas, mas nunca fui campeão paulista. Disse antes que eu lutava na categoria leve? Pois é, mas também fui ligeiro, meio-leve… a idade foi chegando e o peso aumentando (risos).

Ao longo desses 55 anos, 50 foram como treinador. Melhor dizendo: com 15 anos, virei professor. Isso aconteceu em um fase que eu estava decidido a parar, porque não tinha condições financeiras para continuar treinando. Meus pais não podiam pagar e tomei a decisão. Não parei: os meus professores ajudaram muito, me puxaram para dar aula e assim me mantive no esporte. Comecei dando aulas de judô no Assunção (colégio Nossa Senhora da Assunção) para as crianças de 5 anos de idade. Depois, fui para o Palmeirão (Clube de Regatas Palmeiras), onde montava e desmontava o tatame todos os dias… Dava trabalho! Também dei aula por um bom tempo na Academia Sany, que ficava na rua do Rosário. Quando comecei a cursar engenharia civil, eu estava dando aula lá. Então, os amigos da faculdade começaram a treinar comigo. Foi aí que as coisas ficaram mais sérias, com treinos fortes. A lenda foi crescendo (risos).

‘Quando ouço que o judô ensinou alguém a persistir nos sonhos, sei que tudo que fizemos valeu a pena’

Mais experiente, comecei a dar aula com os irmãos Mubarac. Lembro que houve um período em que eles ficaram muito doentes e assumi todas as atividades da academia. Gostava de ajudá-los. Eu dava aulas de segunda-feira a sábado – e competia aos domingos. Em paralelo, dividia o tempo com minhas atividades como engenheiro e fui construindo minha história no Clube de Campo de Piracicaba. Foram 35 anos lá. Criamos uma equipe muito forte, montávamos uma seletiva, sempre com judocas da nossa cidade. Também fui técnico de Cerquilho, participei de Jogos Regionais e Jogos Universitários. Foi um tempo bacana. Bem bacana.

A Heisei surgiu em 2010, quando saí do clube. Não fiz isso antes para evitar qualquer conflito de interesses. Gosto muito competição, sou competitivo, mas entendo que é um processo e antes da montagem de uma equipe, é preciso trabalhar na formação. A ideia, quando criamos a Heisei, sempre foi essa: formar, incentivar as pessoas a perseguirem seus sonhos através do judô. E isso foi muito legal. Ouço hoje muitas histórias de pais contando as conquistas de seus filhos – não só no judô, mas vitórias pessoais. Teve um dia que um pai me parou na rua para comentar que o filho tinha entrado na faculdade. O filho dele já não era meu aluno. Depois de três anos tentando, entrou em medicina. O pai me revelou que, no segundo ano sem sucesso, falou para o filho: ‘Será que não é o momento de mudar e partir para outra opção?’ O filho respondeu: ‘Não. Aprendi no judô a nunca desistir’. Isso é o que faz tudo valer a pena.

Em 2001, Beninho recebeu a faixa preta 4º Dan das mãos do sensei Massao Shinohara, que na época era o único faixa vermelha 10º Dan no Brasil; atualmente ninguém possui essa graduação no país

Beninho sempre defendeu o esporte como ferramenta de educação e instrumento de formação para crianças

É muito gostoso quando ex-alunos, que já estão formados, dizem que lembram todos os dias do que aprenderam no judô. Alguns pais que me dizem que fui o ‘segundo pai’, ajudando na formação com o exemplo. Tem uma história interessante que aconteceu uma vez, lá no clube. Lembro que fui cumprimentar um adolescente, meu aluno, e percebi que assim que ele me viu, jogou o cigarro para longe, para eu não ver que ele estava fumando. Mais tarde, o pai dele me procurou: ‘Eu sei que você tem uma influência muito grande na vida desses meninos, mas hoje foi incrível. Na minha frente, ele não pediu permissão para fumar. Acendeu o cigarro, sem mais. Mas, bastou ver você para jogar fora. Só posso agradecer’. Isso me emociona.

Exemplos assim são vários. Muito tempo, não? Outro dia, brincando, fizemos uma conta rápida em casa. Tive alunos fixos, mas sempre houve uma rotatividade muito grande no judô. Por baixo, nesses 50 anos como professor, tive 8 mil alunos. Foi um ciclo muito bonito, mas… É o momento de encerrar.

‘A decisão é difícil. Não saberia explicar, mas senti a necessidade de viver mais para minha família’

Difícil, sabe? Eu estava bem cansado. Nunca tive uma profissão só. Teve uma época em que eu trabalhava como engenheiro, tinha uma loja de papelaria, que depois virou atacado, e dava aulas de judô. Levantava quase de madrugada e ia dormir de noite, depois da última aula. Quando você faz algo com tanto amor, não consegue desligar. Eu estava sempre ‘maquinando’ alguma coisa e isso gera desgaste, é natural. Vivi tudo com muito empenho. Quando havia uma competição com a criançada, não saía na véspera, ficava em casa, sentia a necessidade de estar inteiro no dia seguinte para tomar boas decisões. Esse comprometimento teve consequências, como adiar a festinha de aniversário dos meus filhos, não passar com a minha esposa o Dia das Mães. Cansa! Ao mesmo tempo, as mensagens que tenho recebido hoje de alunos e pais perguntando o que podem fazer para eu voltar… É um carinho puro.

A decisão de parar vinha sendo amadurecida, mas duas coisas mudaram minha cabeça: a pandemia e uma embolia pulmonar, que tive em maio do ano passado. Não saberia explicar, mas senti a necessidade de viver mais para minha família. Uma vez, estava indo para a Heisei e aconteceu algo curioso. Nossas aulas sempre começavam às seis, seis e quinze da tarde. No caminho para a academia, passamos em frente à uma padaria e vimos as pessoas que estavam saindo do trabalho, chegando para tomar um café. Falei para a Marinete, minha esposa e braço direito de tudo que faço em minha vida: ‘Quando seremos nós?’ Meu sonho era tomar um café da tarde! Deixa eu contar: teve um dia aí que sentei na beira do portão e fiquei vendo o movimento. Eu ri, porque é uma coisa tão idiota (risos)… Mas que eu nunca tinha feito. As pequenas coisas têm muito valor.

Família, o pilar do sensei: filhos e esposa foram as bases para completar mais de 50 anos no esporte

A Marinete acompanhou tudo o que estou contando aqui. São 37 anos de casados, mais uns oito de namoro e nossos filhos: Gabriel, Marcel e Renê. A palavra família sempre foi muito forte para nós. A decisão de parar foi algo que dividi com eles. Falei que não estava aguentando, não tinha mais o pique. Eles me apoiaram muito. Foi aí que percebi que, na verdade, minha família se dedicava ao judô muito mais por mim do que por eles mesmos. É uma mistura de sentimentos: um alívio, uma tristeza pelo fim de um ciclo… Uma sensação de ter criado uma história bonita, contada com aprendizados, afeto, ensinamento, compreensão, humanização. Uma história que reflete na vida de muitas pessoas com o simples propósito de formar bons cidadãos. O judô foi a ferramenta para construir essa conexão.

Em todo esse tempo, me dediquei de corpo e alma. Queria dizer para cada um dos meus alunos que, quando fui mais sério, mais disciplinador, era pensando no bem deles, para transmitir valores. Saber que essa mensagem contribuiu um pouquinho para fazer a diferença no caminho deles é o legado da minha vida. E isso é fantástico.

Benedito Barbosa de Mattos Filho, o Beninho, é faixa coral e kodansha (6º Dan)

Hoje, é a minha vez de dizer que sou muito grato. Aos pais. Aos alunos, crianças, jovens e adultos. Eles sempre mostraram para mim o quanto o meu trabalho era importante – e foi por isso que durou tanto tempo. Em maio, completo 65 anos de idade, 55 de judô, 50 como professor e treinador. Durou por causa deles e pela minha família… (Beninho faz uma pausa, segura as lágrimas e continua, com a voz embargada) À minha família, agradeço por tudo. Afinal, eles são o meu tudo.

Muito obrigado”.

Por: Lider Esportes - Piracicaba

Fotos: Leonardo Moniz/Líder Esportes


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