quarta-feira, 3 de junho de 2020

Rotina transformada por Covid-19 obriga atletas a superar limitações para treinar

Sabrina Mazzola da natação, Bruna Tomaselli do automobilismo e Maria Portela do judô enfrentam problema em comum 

Espalhados pelas mais diversas atividades esportivas, atletas amadores e profissionais acabam unidos por um mesmo problema, durante os tempos de pandemia da Covid-19. O que seria capaz de unir estes esportistas, que inclusive têm aspirações diferentes, em torno de uma mesma angústia? Com calendários de competição em xeque, precisam manter a forma ideal e a saúde em meio ao isolamento social e ao risco representado pelo coronavírus. Para a judoca Maria Portela, a piloto Bruna Tomaselli e a nadadora Sabrina Mazzola há a mesma incerteza: quando será possível retomar a vida normal para competir? 

Rio de Janeiro, 2016. 

A manhã agradável que se apresentava no inverno de agosto, na capital esportiva do planeta naqueles dias, contrastava com a tensão da espera por uma decisão do japonês responsável pela arbitragem da luta. Na Arena Carioca 3, no Parque Olímpico da Barra da Tijuca, o cronômetro ainda marcava apenas 13 segundos do “golden score”, o ponto de ouro do judô. Nas oitavas de final da categoria até 70 quilos, a gaúcha  Maria Portela buscava avançar para manter vivo o sonho da medalha olímpica dentro de casa. 

Minutos antes, a técnica Rosicleia Campos, sentada em uma cadeira à direita das câmeras de transmissão que levavam as imagens das Olimpíadas para o mundo todo, próxima ao placar que ainda mostrava as pontuações zeradas com apenas uma advertência para cada judoca, gritava com sua atleta. Uma característica já conhecida da treinadora da seleção brasileira de judô, a qual estão acostumados os fãs que acompanham o esporte. 

Até o começo da “morte súbita”, Portela parecia bem fisicamente. Tanto quanto a sua rival, a austríaca Bernardette Graf, número quatro do mundo naquele 10 de agosto, era a favorita a avançar. Mas isso não intimidava a então número 14 da categoria.

No entanto, no começo do “golden score”, o erro. Portela abraçou diretamente a cintura da rival, sem estabelecer a pegada antes, como manda a regra, na tentativa de jogá-la ao solo. Após a conferência no vídeo, os árbitros aplicaram a segunda punição para a judoca brasileira, resultando na eliminação da atleta. 

A cena seguinte ficou marcada. A brasileira, com seu quimono azul, escorou testa com testa na vencedora e, no tatame amarelo da Arena Carioca, foi às lágrimas. O espírito olímpico, norteador de atletas de alto nível, falou alto, e Graf, alguns centímetros mais alta em seu quimono branco, fez-se ainda maior ao dar o carinho necessário para quem precisava naquele momento. 

Daquele momento em diante, Portela passou a contar os dias para ter uma nova chance no principal evento esportivo do planeta. Em 2020, ela esperava repetir algumas das sensações vividas na capital fluminense há quatro anos, ou mesmo no ciclo olímpico anterior, quando esteve nos Jogos pela primeira vez, apesar de voltar de Londres eliminada ainda na primeira rodada. 

Dessa vez ela sonhava em ir mais longe. Mais experiente, a atleta de 32 anos da Sogipa caminhava para seu último ciclo olímpico, em Tóquio, nos Jogos que estavam marcados para julho deste ano. No entanto, a pandemia do coronavírus, que assola o planeta, adiou todos os eventos esportivos e paralisou competições ao redor do mundo, incluindo as Olimpíadas, que até o momento deverão ser realizadas em 2021.

No fim, Graf não levou o ouro no Rio. A vencedora na categoria foi a japonesa Haruka Tachimoto. O objetivo de Portela era ir a Tóquio para devolver na mesma moeda: “Ia lá na casa dela buscar a medalha que ela tirou de mim aqui”, declarou. 

Mas a rotina foi alterada significativamente com a pandemia. Até o dia 5 de maio, os treinos ocorriam por video conferência, com acompanhamento do fisioterapeuta e do preparador físico, à distância. No dia 5 de maio, ainda que de forma parcial, os treinos foram retomados na Sogipa. “Estávamos fazendo trabalhos mais direcionados, com o que a gente tem em casa”, explica.

Desde março até o retorno recente, os trabalhos de entrada de golpes, antes feitos com parceiros no tatame, na Sogipa, aconteciam com elástico e borracha. Portela explica como funcionava “ O elástico tem pressão, mas não é a mesma coisa comparado à força do colega. Tínhamos o movimento de ação e reação, mas não era possível comparar”, detalha

O aspecto mental também sofreu interferência com a nova rotina. Sem poder sair de casa, a motivação diária dos colegas e companheiros, algo que ocorria presencialmente, já não acontece mais. “Um motiva o outro, empurra pra cima. A videoconferência tem nos aproximado, para que a gente consiga treinar mais e melhor. Tentamos nos adaptar”, assegura.

Antes da Olimpíada, Portela disputaria seis competições internacionais. No entanto, não há nenhum tipo de definição sobre a retomada das disputas. “Eu me preocupo. Há rumores de que não vão mais ter, e a pontuação pode ficar apertada”, projeta. Para tentar recuperar o tempo perdido, ela aposta no acompanhamento dos profissionais que estão auxiliando à distância: “Eles vão me ajudar, estamos trabalhando juntos para que eu esteja na melhor forma possível”.

A indefinição quanto à realização dos Jogos de Tóquio deixa a gaúcha apreensiva. Inicialmente, o evento foi transferido para 2021. Porém, possíveis novas ondas da pandemia colocam em xeque seu acontecimento, já que não há a possibilidade de ser novamente remarcado. Seria, então, o provável fim da última chance dela de disputar as Olimpíadas. “Não gosto nem de cogitar essa possibilidade.” 

Por ora, tenta manter a calma, já que o trabalho psicológico é tão importante quanto os aspectos físicos e técnicos. E, enquanto a pandemia não passa, tenta tirar lições durante o confinamento. “Espero que as coisas que a gente precisa aprender com isso sejam aprendidas, e que possamos voltar o mais rápido possível, sendo pessoas melhores”, destaca. 

Manaus 2020

O cenário que Sabrina esperava encontrar na capital do Amazonas em agosto é muito diferente daquele vivido no Norte do país nos dias atuais. As capas dos principais jornais de uma das cidades brasileiras mais atingidas pela voracidade mortal da Covid-19 estampam o horror que já havia sido antecipado em outras partes do planeta: valas comuns abertas para conseguir enterrar os mortos pela doença, já que tanto o sistema de saúde quanto o funerário colapsaram no local. 

O rio Negro, cuja nascente está localizada na Colômbia, tem sua origem nas bacias do rio Orinoco, a terceira maior do continente. Seus mais de 1700 quilômetros cortam também o território da Venezuela, e é o segundo maior em volume de água, atrás apenas do Amazonas, que ajuda a formar mais adiante em sua extensão. 

Nas águas turvas que cortam o Norte do país e depois se juntam ao rio Solimões para formar o Amazonas, chegando até Manaus, Sabrina Mazzola, de 38 anos, pretendia ser a primeira gaúcha a participar do Amazon Challenge 30km. A pandemia, contudo, adiou a prova. 

Conhecido pelas adversidades, o trajeto impõe vários desafios. A alta temperatura, o elevado grau de acidez, água densa e fortes correntezas. A janela de realização do evento estava prevista para os dias 7 a 11 de agosto. Agora, não há previsão de quando ela irá acontecer, diante do novo cenário imposto pelo coronavírus. 

São três as ultramaratonas na modalidade solo, de desafio, no país. As outras duas, no mar e em águas de baixa temperatura, Sabrina já cumpriu. Caso ninguém realize a prova até agosto, será a primeira mulher a completá-las. Ela nada desde os 13 anos, quando realizou sua primeira prova em águas abertas, com uma travessia de 3 quilômetros em Tapes, na metade Sul do Estado. 

Começou a aumentar os desafios a partir dos 31, quando resolveu encarar as ultramaratonas. De lá para cá, quando deixou o seu foco principal, as competições em piscinas, realizou provas importantes. A primeira foi a Travessia 14 Bis 24km, em São Paulo, em 2016. Um ano depois, tornou-se a segunda mulher a nadar a travessia do Leme ao Pontal 36km, no Rio de Janeiro. Em 2019, fez a Travessia da Ilha do Arvoredo, em Santa Catarina, com 25 km. 

Ela se preparava para um dos grandes desafios de sua vida como atleta amadora, quando a pandemia interrompeu boa parte dos trabalhos. E a rotina mudou completamente desde a parada. Ela explica que são necessários pelo menos seis meses de preparação para o desafio. Eram treinos seis vezes por semana, de segunda a sábado, aumentando gradativamente o volume e a intensidade. “Naquela semana antes de começar a quarentena, estava fazendo 5,5km por dia, em 1h30min. No sábado, cheguei a quase 9km, em 2h30min”, detalha.

Ela lamenta o adiamento do desafio, já que perdeu muito treinamento na água desde o início da quarentena. A ideia era chegar a seis ou sete treinos por semana, aos poucos, até chegar em 16 quilômetros por treino. 

Além do trabalho em águas abertas, também fazia treinos na piscina, uma vez por semana. Como parte da preparação física, também faz terapia funcional do esporte e pilates uma vez por semana. Há, ainda, o reforço com elástico, exercícios em geral e bicicleta ergométrica. Esses últimos, mantidos no isolamento, em casa, para garantir o bom condicionamento quando puder retomar os treinos na água.

Por não ser atleta profissional, a questão dos custos é uma das grandes preocupações de Sabrina. Ela já estava com passagem aérea comprada para Manaus para ela e para o namorado, que iria acompanhá-la nos dias do desafio. Após conversar com seu agente de viagens, ainda não sabe se irá conseguir cancelar o trecho sem multa, o que representaria um prejuízo. Caso o voo seja cancelado, o ressarcimento ocorre por parte da companhia. 

Além disso, outros gastos estão previstos, como alimentação e hospedagem. Outros custos de preparação também interferem no planejamento, como as despesas com treinador, fisioterapeuta, nutricionista e suplementos.

Para tentar compensar as perdas, Sabrina criou um projeto de vendas de produtos e patrocínios, com diferentes valores e contrapartidas. As cotas bronze, prata e ouro, com valores de R$ 250, R$ 500 e R$ 1000, respectivamente, preveem desde espaços para estampar as marcas em camisetas e toucas, até postagens nas redes sociais. “Mas não cheguei a produzir, estava finalizando os acordos com as gráficas e patrocinadores, e parei tudo”, lamenta-se. 

Enquanto espera pelo fim do isolamento social, Sabrina mantém o foco na preparação física e mental, e segue na busca por patrocínios. Através do Instagram @atletasamazolla, interessados podem fazer o contato para contribuir com a realização do desafio no Amazonas. “Sou nadadora amadora, ou seja, nado nas horas vagas do meu trabalho, então faço um grande esforço para encaixar tudo na minha rotina e no meu orçamento. É sacrificante, mas amo nadar e amo desafios. Não consigo imaginar minha vida sem isso”, frisa. 

Milão 2020

As ruas da cidade ao Norte da Itália, berço da moda no planeta, costumam ser preenchidas por azul e preto em noites europeias de futebol. No entanto, naquele fim de tarde de fevereiro, o azul e preto que rumava ao estádio Giuseppe Meazza era outro. Os italianos que encantavam a Europa com seu futebol vistoso e ao mesmo tempo agressivo desta vez trajavam uniforme parecido, mas vinham de Bérgamo, distante pouco mais de 50 quilômetros de Milão.

De lá, mais de 45 mil torcedores deixaram a cidade para ver de perto a página mais bonita da história da Atalanta e, com um pouco de pretensão, quem sabe, de Bérgamo. Esperavam um resultado positivo no primeiro jogo das oitavas de final, diante do Valencia. Para piorar, teria que abrir o confronto fora de seus domínios, apesar de contar com a certeza do deslocamento da fiel torcida rumo a Milão. Seu estádio, de 22 mil lugares, não preenchia os requisitos.

A Atalanta vivia seu próprio conto de fadas, daqueles que parecem restritos às agremiações enormes. Para pequenos, representam apenas sonhos distantes, vistos pela TV e comemorados apenas por seus vizinhos mais prósperos e de cifras milionárias. E o quarto gol, aos 17 minutos do segundo tempo, dava a certeza da vaga. Nas arquibancadas, muita festa: beijos, abraços e comemorações efusivas pela quarta vez na noite, que terminou com placar de 4 a 1. A Atalanta encaminhava sua classificação, e a história permaneceria viva pelo menos por mais 180 minutos. 

Poucas semanas depois, o resultado seria catastrófico. A partida de Milão foi considerada por especialistas e autoridades sanitárias europeias como uma “bomba biológica”, responsável por ajudar a detonar o coronavírus no norte de Itália e acelerar o contágio em meio a pandemia, resultando em colapso do sistema de saúde e milhares de mortes no país. Com o retorno dos torcedores à cidade, Bérgamo foi severamente atingida. As comemorações deram lugar a uma das cenas mais tristes vividas no mundo desde o início da pandemia, no final de dezembro. Caminhões do Exército retiraram os corpos da cidade, em uma comitiva silenciosa e dolorida. 

O elenco do Valencia, adversário naquela tarde, não escapou ileso. A vítima da Atalanta nas oitavas de final da Champions League teve 35% do seu elenco diagnosticado com Covid-19 após a partida, entre jogadores e comissão técnica. A Espanha não demorou para ser atingida em cheio pelos efeitos da pandemia: mais de 29 mil pessoas morreram no país, que enfrentou um lockdown rígido, deixando as cidades fechadas com a quarentena. 

E era justamente lá que Bruna Tomaselli esperava abrir caminho para a sua própria jornada europeia. A piloto de 22 anos, natural de Caibí, município no Oeste catarinense com pouco mais de 7 mil habitantes, se preparava para estrear na WSeries, categoria de fórmula do automobilismo feminino. 

Mesmo com a pouca idade, Bruna acumula muita experiência no esporte. Iniciou sua jornada aos sete anos, onde competiu no kart até os 15, quando passou para os fórmulas. Foram dois anos no sul-americano, até ir para os Estados Unidos, onde permaneceu esse mesmo tempo em uma das categorias de acesso à Fórmula Indy. 

Agora, vinha se preparando para competir no WSeries, onde pilotaria nesta temporada pela primeira vez em pistas europeias, experiência pela qual ainda não passou em sua carreira. E a abertura da preparação aconteceria justamente na cidade de Valencia, na Espanha, onde teriam início os treinos preparatórios no início de maio. 

A temporada de 2020 da WSeries começaria no fim do mês, com uma corrida em São Petersburgo, na Rússia. Das oito etapas no total, seis aconteceriam na Europa. As duas últimas seriam realizadas na América do Norte, com corridas em Austin, no Texas, e na Cidade do México, já no mês de outubro. As etapas finais seriam realizadas junto com a Fórmula 1. 

A rotina de Bruna também mudou. A viagem de cerca de 50 quilômetros, da cidade onde mora, até Frederico Westphalen, no Norte do Estado, onde fica a pista de kart onde treinava duas vezes por semana e cursa faculdade de jornalismo, não está mais acontecendo.

Agora, os treinos acontecem em um simulador, bastante parecido com a realidade das pistas, e utilizado por pilotos amadores e profissionais não apenas durante a pandemia, mas no trabalho do dia-a-dia, com o objetivo de dar conhecimento sobre as pistas: seus pontos de freada, ultrapassagem e outros aspectos importantes da realidade durante as competições.

Ela elogia o equipamento, e a capacidade dele em simular condições reais, mas também faz ponderações sobre seu uso. “Claro que não vai conseguir 100% das reações do carro, e mesmo as pistas algumas vezes têm distâncias diferentes. Mas, longe do carro, sem poder treinar, é o que ajuda a conhecer e pegar o jeito”, conforma-se. 

Mas nem só da parte prática vive um piloto. Para conduzir e manter um fórmula na pista, é preciso dar muita atenção ao aspecto físico. Bruna conseguiu manter a rotina de treinos na academia, três vezes por semana, sendo duas delas com personal trainer. A rotina inclui bicicleta e esteira. 

Sobre os efeitos da pandemia na região em que mora, Bruna relata preocupação com alguns casos em Chapecó, distante cerca de 100 quilômetros. Mas garante que a população da cidade está mantendo os cuidados necessários para evitar o contágio do coronavírus. 

Apesar disso, garante ter boas expectativas para a retomada. “Espero que isso passe logo. Aí vai abrir a pista novamente, e eu vou voltar a me preparar”, finaliza ela, em poucas palavras, com a certeza de quem quer manter vivo o sonho de sua própria jornada nos autódromos europeus.

Por: Nicholas Lyra - Correio do Povo


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