domingo, 29 de julho de 2012

O quase olímpico


“Go Go FU KU MI… Go Go FU KU MI”… o grito vem de cinco japoneses de bochecha pintada e bandanas com sol nascente que, de um canto de arquibancada, tentam incentivar sua atleta. No Japão,  judô é coisa séria – tem cobertura intensa, mesa-redonda, debate… e torcida. Torcida com gritos como os que tentavam mover a favorita Tomoko Fukumi na direção da medalha de ouro que acabou no peito da brasileira Sarah Menezes no sábado.

Sarah não queria lutar com Fukumi – pois seu “jogo” não encaixa com o da japonesa. Por isso sorriu quando viu a romena Alina Dimitrou despachar Fukumi na semifinal. Sarah sentiu possibilidade do ouro. Não que Dimitrou seja fraca. Até então campeã olímpica, a judoca tinha chegado à final de modo brilhante. Na luta contra a mongol Urantsetseg Munkhbat (os nomes mongóis tem sido um espetáculo à parte) ela buscou um empate em yuko a seis segundos do fim. No golden score, novamente, a seis segundos do fim, conseguiu um ippon derrubando com uma rasteira a adversária e projetando suas costas ao solo.

O que nos fascina nas Olimpíadas é a fronteira – nosso proverbial duelo com o tal do limite humano. Em alguns esportes é fácil entender o fascínio que nosso milenar duelo cria. Aqueles que empurram o limite pra frente nos soam especiais. Usain Bolt é o melhor do mundo em correr mais rápido do que os outros. César Cielo é o melhor em nadar mais rápido distâncias curtas. Michael Phelps nada melhor que todo mundo num grande número de distâncias e estilos. Mas e no judô? No judô você é melhor em que? Você o melhor em fungar no suvaco alheio? Em ficar posicionado de maneira contorcionista entre duas coxas?

Talvez uma definição seja “você é o melhor do mundo em projetar ao solo um outro ser humano que não quer ser projetado”.  Sendo que esse ser humano está, ao mesmo tempo, tentando te projetar. Ao contrário da grande maioria dos desafios olímpicos – o limite no tatame é dado pelo outro – há conflito e confronto o tempo todo – desde o balé de mãos para buscar a pegada no quimono alheio ao duelo constante por posturas favoráveis.

A medida do talento de um judoca é imprecisa – ele envolve músculos, velocidade, condicionamento, intuição… e sobretudo força mental – esse bicho interior que move o atleta de alto nível rumo a alturas que nós, meros mortais, não atingimos.  No judô, ela é o maior ativo de um atleta – pois é necessário manter a concentração e coordenar movimentos rapidíssimos com uma tática pré-estabelecida – e ir se adaptando em tempo real sem perder o foco. É um jogo mental e físico – em que um centésimo de distração pode destruir quatro anos de preparação. E, em concentrado, você precisa ouvir os gritos dos técnicos – e ocasionalmente dos torcedores-técnicos que berram da arquibancada:

- Aumenta o ritmo, Sarah!
- Intensidade, Sarah, não anda pra trás!

Se isso faz diferença – ou se atrapalha – depende da capacidade multi-tarefa de cada judoca. Não tem mais bobo no judô mundial, diria o outro. O outro, no caso, é alguém que realmente entende do tema:

- É difícil ter zebra. Todos os judocas se conhecem muito por causa do circuito. – diz o ex-judoca Flavio Canto, hoje comentarista.

Foi esse conhecimento que deixou Sarah Menezes feliz quando viu a vitória de Dimitrou sobre Fukumi. Esse conhecimento – e a globalização dos tatames – tornou a disputa olímpica mais fácil de prever. Foi-se tempo em que um jovem desconhecido aparecia do nada e atropelava. O circuito ensina os judocas sobre os outros – sobre preferências, pegadas, tendências… e encaixes.

E nesse contexto é que salta do tatame a força mental desses atletas – na vitória… e na derrota. Mesmo os derrotados nos critérios subjetivos, os eliminados por delírios arbitrais, não protestam enfaticamente. No máximo jogam braços para o alto – ou se recolhem a um olhar perdido.  Eles já perderam tanto – que já acostumaram a lidar com a frustração.  O judô civiliza em cada lição de humildade – pois mistura conflito físico impressionante com cortesia e reverência. Soa contraditório, mas tem algo tradicionalmente humana: quando empacotamos, pasteurizamos a arte de derrubar o outro com alguma beleza… estamos, mais uma vez, enquadrando nossos instintos. A seleção natural segundo Jigoro Kano.

- O judô te ensina a cair. A perder. A levantar. A ganhar – disse uma vez o mesmo Flávio Canto.

Sim – porque além de perder muito e para muitos – existe a realidade do sonho. Dos mais de 60 atletas de cada categoria, ao menos 16 vão embora – alguns quase sem suar. E encaram  quatro anos de um sonho – eliminatórias, classificatórias, rankings – virando  fumaça em cinco minutos. Ou menos. Mas… para os derrotados na primeira luta – como os brasileiros Leandro Cunha e Érika Miranda neste domingo, Londres demorou… cinco minutos – ou pouco mais (pra Érica demorou um pouco mais porque ela perdeu na prorrogação).

Essa é a cruel realidade olímpica: a vida do atleta pode mudar ali nesses trezentos segundos… ou não. As oportunidades oferecidas por uma medalha são inúmeras, publicitárias, financeiras, até profissionais. Pode ser a diferença entre uma carreira de comentarista, referência ou modelo.. e a de professor de judô (não que haja alguma desonra). E por vezes a medalha está tão perto… e tão longe… e a decisão sobre o futuro cai em mãos terceiras.

Neste domingo, por exemplo, a italiana Rosabal Forcinitti enfrentou a luxemburguesa Marie Muller na disputa do bronze. Depois de oito minutos (cinco mais três de golden score)… ninguém pontuou. A decisão foi para as subjetivas bandeiras – e os juízes deram vitória para a italiana. Forcinitti caiu no chão ao ver o resultado. Muller ficou com o olhar vazio. A luxemburguesa tinha lutado bravamente – tanto quanto – mas não levou pra casa aquele pedaço de metal – e seus símbolos, patrocínios, oportunidades.

Levou, em seu lugar, o pior sabor olímpico – o da quase medalha. O da quase mudança de vida, o do quase voltar pra casa dando entrevistas, a quase campanha publicitária, a quase oferta, tudo aquilo que poderia ter sido e que não foi… por um detalhe. Mas, bom, assim é o esporte. Ganhar, perder – saber ganhar, saber perder. . O quase olímpico não deixa de ser mais uma queda para quem está tão acostumado a cair. E levantar.

Por: Gustavo Poli - Globoesporte

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