Dentre as dezenas de candidatos à faixa preta em 2023 da Federação Gaúcha de Judô, um deles se destaca sobre os outros. E não se trata necessariamente por uma questão envolvendo determinada técnica mais aprimorada que os outros ou mesmo um currículo de títulos já conquistados. Trata-se pelo exemplo que Itamar Luiz França demonstra ao participar de cada aula para superar as etapas em busca da sonhada faixa preta. Isso aos 84 anos de idade, na cidade de Caxias do Sul.
Em meio a tantos rostos jovens de seus colegas na faixa marrom, Seu Itamar mostra uma disposição ímpar para realizar um sonho e concluir, enfim, uma trajetória iniciada há mais de 50 anos, quando vestiu pela primeira vez um quimono na Serra gaúcha. Atrapalhada por intempéries nos anos 1990, sua trajetória na modalidade foi retomada no início deste ano com o claro objetivo de conseguir a graduação tão desejada.
“Pratiquei até uns 30 anos atrás. Fiz uma tentativa de retorno e não deu, aí me aquietei. Até que o meu sensei Matheus (Cunha Lima) veio me convidar, com todo o empenho para eu voltar a fazer judô, me prometeu que nós dois juntos conseguiríamos uma faixa preta para mim, o que foi para mim algo maravilhoso”, recorda. “Isso me despertou para o esporte novamente”, relata o judoca, que nos últimos anos estava se dedicando à prática do tênis.
Retomada de uma história
A bem da verdade, a faixa preta já deveria há muito tempo estar na cintura de Seu Itamar, que chegou a ser diretor do departamento de judô do Recreio da Juventude. “Na oportunidade que nós fomos fazer o curso para a faixa preta, de quatro exames que tinha que fazer, fiz três e passei nos três. Não pude ir no quarto por conta de uma lesão”, relembra. “Acho que a Federação poderia ter me oportunizado para fazer a faixa preta. Houve um mal entendido, o que me fez abandonar o judô.”
O “mal entendido”, contudo, fez seu sonho da faixa preta ser, nas palavras dele, “arquivado”. No entanto, aquela vontade permaneceu. E veio à tona novamente no início deste ano, incentivada pelo professor Matheus Cunha Lima, da Torino. “Quando ele me fez a proposta de voltar, não pensei duas vezes”, conta o candidato a sho-dan, que garante que vai ao tatame cinco vezes por semana. “Eu me lembrava bem dos golpes e, só de ver praticar, identificava”, diz ele, que admite: “Tem alguma coisinha que ainda tenho uma dúvida”. Mas disposição não falta: “Voltei com fôlego, tenho 1,78m de altura e peso 80 quilos. Estou como um bailarino espanhol”.
Na volta ao dojô, o choque etário não foi problema. Muito pelo contrário, segundo seu Itamar: “Se tu soubesses quantos amiguinhos de sete, oito anos que eu tenho”.
“Um projeto nosso”
O sensei Matheus Cunha Lima também não esconde a alegria de ver seu Itamar no tatame. “Essa faixa preta virou um projeto e sonho nosso. Agora voltou com força de vontade e todas as boas intenções de fazer dar certo”, afirma ele, cuja relação com Seu Itamar vem de tempos atrás. Eles se conheceram décadas atrás, mas a amizade entre ambos ganhou tração na faculdade, quando estavam em papéis invertidos. “Eu o reencontrei quando entrei para a graduação de Direito e ele foi meu professor, me identifiquei na hora com ele. Pelo conhecimento jurídico, mas muito pelo fato de também ser judoca”.
O professor conta que há na Torino um planejamento especial em torno de Seu Itamar. “Fazemos um trabalho neurológico e de propriocepção, o que nos traz ainda benefícios para o dia a dia dele.” Para ele, “o principal objetivo está sendo cumprido, que ele vivencie o judô todos os dias”. Isso se dá, naturalmente, com a participação nos treinamentos, assim como no simples acompanhamento de treinos e na participação de eventos da Federação Gaúcha de Judô.
E para além do treinamento em si, existe um time multidisciplinar envolvido neste projeto da faixa preta: “Temos uma equipe envolvida e comprometida, sonhando junto: o professor Jorge Larré Bossardi, responsável pelas caronas de ida e volta; a professora Anelise Weber, que também é bombeira civil e cuida da parte de controle de pressão arterial e frequência cardíaca; o professor Mário Henrique da Rocha acompanha nos cursos; Guilherme Fedrizzi, médico e candidato a faixa preta em 2024, que também acompanha nos cursos”, cita.
Determinação e alegria
Em meio a essa dedicação, o professor Lima ainda vê o ambiente criado a partir da presença do Seu Itamar entre os jovens. “Independente da graduação, existe o respeito aos mais velhos. Seu Itamar foi muito importante aqui em Caxias do Sul”, assegura o sensei, lembrando que o hoje pupilo iniciou na modalidade antes dele próprio. “Graças a turma dele o judô se manteve ativo em Caxias”, exalta. “É uma relação linda de se ver, os pequenos têm muito respeito e gostam de ouvir o que o Seu Itamar tem a dizer. O maior exemplo é a determinação. Saber aonde quer chegar e fazer o que precisa ser feito.”
A trajetória de Seu Itamar neste ano já começa a ser falada em outros cantos do Estado. “Uma pessoa de 84 anos que se dispõe a fazer os cursos, participando das atividades, é uma lição de humildade e de valorização da faixa preta”, destaca o presidente da FGJ, Luiz Bayard. “É um grande exemplo a todos os jovens que se propõem a seguir este caminho do judô.” No fim de novembro, os candidatos aprovados para obter a faixa preta devem ser conhecidos.
Cada vez mais próximo da faixa preta, Seu Itamar garante que a relação tanto com os colegas, quanto com a equipe da Torino e com o próprio esporte é recíproca: “É uma alegria ir no judô. Meu coração começa a bater mais forte já quando estou indo para lá”.