quarta-feira, 30 de março de 2016

Refugiados com potencial olímpico sonham fazer e reescrever a história no judô

Popole Misenga (à direita) perdeu a mãe na guerra e não tem notícias de três irmãos
Esta é uma história de guerra, fuga, esporte e esperança, que pode ter um dos principais capítulos em agosto de 2016. Pela primeira vez, os Jogos Olímpicos terão a participação de um time de refugiados. Os nomes dos atletas escolhidos serão divulgados em junho pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Dois judocas que estão no Rio de Janeiro lutam para integrar esse grupo.

A possibilidade de fazer parte da equipe olímpica deu novo sentido à vida de Popole Misenga e Yolande Mabika, refugiados da República Democrática do Congo. Há um ano, eles treinam no Instituto Reação, organização não governamental que promove a inclusão social por meio do esporte.

Na quinta-feira (24), os judocas assinaram, na sede do Comitê Olímpico do Brasil (COB), uma carta de intenção para participar do Programa Solidariedade Olímpica do COI. Eles vão passar a receber ajuda de custo até agosto de 2016, para poderem se dedicar ainda mais aos treinos. O time de refugiados é sinônimo de esperança para quem praticamente esqueceu o que é viver sem uma enorme carga de sofrimento.

A guerra
Yolande, 28 anos, e Popole, 23, viveram horrores de perto na República Democrática do Congo, segunda maior nação africana em extensão territorial.  A história recente do país, que também já foi chamado de Zaire, vem sendo escrita com sangue. As últimas décadas foram marcadas por conflitos étnicos, genocídios e uma guerra civil que, na prática, nunca terminou.

Yolande nasceu na capital Kinshasa, mas foi com a família ainda pequena para Bukavu, no leste, região mais atingida pelo conflito. Ali também morava Popole. Ambos tiveram que fugir de Bukavu para a capital devido ao acirramento das disputas locais.

“Aos sete anos, saí (de Bukavu) por causa da guerra. Fugi pela floresta por oito dias. Em uma província pequena, subi no barco que me levou até a capital. Lá fiz uma amizade e comecei a morar com um amigo”, relembrou Popole, que deixou três irmãos para trás sem nunca mais ter notícias. A mãe já havia sido morta.

A história de Yolande foi similar. Os dois passaram a se dedicar ao judô em Kinshasa e foram convocados para o Mundial de 2013, no Rio de Janeiro. A situação desumana na viagem foi o estopim para o grito de liberdade.

A fuga
Já no Rio, em agosto daquele ano, a empolgação em disputar o mundial se transformou em desespero. De acordo com os judocas, o chefe da delegação pegou documentos, dinheiro e até quimonos dos atletas e desapareceu. A fome e o desrespeito se tornaram insuportáveis.

“Não lutei (no Mundial). Pensei: já sofri muito, não vou lutar. Saí na rua, fugi do hotel, porque nosso treinador deixou a gente três dias sem comida. Eu não aguentei, tinha fome. Eu falei: essa é minha oportunidade para ficar mesmo neste país”, contou Yolande.

Popole chegou a fazer a primeira luta, com um quimono emprestado. Perdeu a disputa, mas não queria perder a dignidade. Seguiu os passos de Yolande. “Lutei lá com fome, com sofrimento. Tudo ficou no coração. Decidi: vou ficar mesmo aqui. Vou me virar. Alguém vai me ajudar”, contou.

Ele vagou alguns dias pelas ruas em busca de alguém que o entendesse, já que falava francês e a comunicação era difícil. Até que um angolano o encontrou e o levou para a Cáritas, entidade católica que presta auxílio a refugiados. Com o mesmo amigo, passou a morar em Brás de Pina, um bairro da zona Norte do Rio onde vivem muitos africanos.

Os conflitos do tráfico nas proximidades fizeram com que Popole se lembrasse de cenas vividas em sua terra natal. Quase desistiu, mas os novos amigos o convenceram a ficar. Ele ficou, Yolande também.

Ela conta que a dificuldade é grande em encontrar trabalho, porque eles não dominam o português. Atualmente, ela mora de favor com uma amiga angolana e a família dela (marido e três filhos) em Cidade Alta, uma comunidade também na zona Norte. Popole se casou e mora com a esposa Fabiana e o filho Elias, de um ano, em Brás de Pina. As dificuldades da nova vida ganharam alento em abril de 2015, quando um convite inesperado pareceu até brincadeira.

Yolande diz que comum confinar os atletas que não conseguiam bons resultados
A volta 
“Ligaram da Cáritas e disseram que o Flávio Canto estava me chamando. O campeão do Brasil está me chamando? Por quê? Pensei: estão me zoando. Já esqueci judô. Sou refugiado, refugiado pode lutar? A gente encontrou o Flávio. No dia, quando vi o lugar, as crianças treinando, fiquei muito feliz, porque eu gosto do judô”, relembra Popole, em referência ao ex-judoca Flávio Canto, medalhista olímpico em Atenas 2004 e presidente do Instituto Reação.

Eram as portas do esporte se reabrindo. Popole e Yolande passaram a ser treinados no polo Cidade de Deus do Instituto Reação, que funciona dentro da faculdade Estácio, em Jacarepágua, zona Oeste do Rio de Janeiro.

“Eles estavam mal alimentados. Quando a gente exigia na parte física, por exemplo, eles não aguentavam porque não tinham nem comido. O Reação atendeu dando quimono, cesta básica. Eles moram longe, resolvemos ajudar na passagem, e damos lanche. Tivemos que suprir essas necessidades, para depois exigir”, explicou o sensei Geraldo Bernardes, coordenador de Alto Rendimento do Reação.

Uma vez preparados para as atividades, outro grande desafio surgiu: era difícil para Yolande e Popole entenderem a diferença de treino e competição e, mais do que isso, que a derrota fazia parte do esporte. Veio à tona a dinâmica macabra a que eram submetidos na capital congolesa.

“A gente viajava para competições. Se não pegava medalha, ficava na prisão. Colocavam a gente num lugar como uma cela pequena por 10 dias, 15 dias, sem comer nada, só café, pão”, revelou Yolande.

“Lá eles não podiam perder. Isso me causou impacto social, porque quando chegavam na beira do tatame e era hora de parar a luta, meu atleta relaxava o corpo, eles jogavam meu atleta no chão e ele acabava se machucando. Ninguém queria mais treinar com eles. Isso até o dia em que parei todo mundo, fiz uma reunião para contar a história deles, e o pessoal ficou mais acessível. E eu também os chamei, Popole e Yolande, e disse que aqui esse sistema não existia, que tinha que ter tratamento de irmão, gentileza e a filosofia da própria luta, o fair play”, contou Geraldo.

O deslocamento casa-treino não dura menos que duas horas para cada um deles. No Reação, Yolande e Popole têm a oportunidade de treinar com atletas de seleção brasileira de judô e elevar a qualidade técnica e a preparação física. De acordo com o sensei, treinos com a seleção brasileira estão previstos para os próximos meses, assim como a participação no campeonato carioca, para que eles possam ganhar ritmo de competição.

A chance
Os treinamentos no Reação se intensificaram nos últimos meses em virtude da possibilidade de participação no Rio 2016. “Desde o momento em que se vislumbrou isso, estamos fazendo o treinamento com eles igual ao que fazemos com os atletas que vão disputar as Olimpíadas, mas lógico que com situações diferenciadas, porque a escola deles é a do Congo, não é tão forte quanto a brasileira. Mas eles têm uma vantagem grande porque chegaram aqui em abril (do ano passado), treinando com atletas de alto nível e com a nossa equipe altamente capacitada para dar apoio a eles”, explicou Geraldo.

O COI pediu aos comitês olímpicos nacionais a indicação de refugiados com potencial de qualificação para os Jogos Rio 2016. O Comitê Olímpico do Brasil (COB) indicou Popole e Yolanda, o que aumenta as chances dos congoleses estarem no seleto grupo de cinco a dez atletas do time olímpico de refugiados que será divulgado em junho.

“É uma história da minha vida. Vou contar a história, vou falar para o meu filho, vou falar para muitas pessoas que eu era um refugiado, refugiado no Brasil, e lutei a Olimpíada. Vou contar essa história mesmo, para fazer um livro e poder falar com outros refugiados”, disse Popole. Só no Brasil, segundo o Itamaraty e o Ministério da Justiça, há 8.500 pessoas com o status de refugiados. Outros 25 mil pedidos estão sendo analisados.

“A felicidade da minha vida é o judô. Todo atleta, se lutou Mundial ou Olimpíada, fica feliz. Eu ficaria feliz porque não lutei o Mundial, cheguei para lutar e não aguentei. Agora lutar a Olimpíada seria muita felicidade, porque tudo vai entrar na minha história de vida e do esporte judô”, disse Yolanda.

Os dois acreditam que estar na Olimpíada pode ser também uma forma de dar notícias à família. Se dependesse do sensei, os dois já estariam garantidos. Para ele, a experiência de treinar Popole e Yolande já é bastante gratificante. “Eu, como técnico que fui a quatro olimpíadas, nunca tive a experiência de treinar refugiados. Eles, embora mais velhos, eles precisam ser transformados de alguma maneira por tudo o que sofreram, e estamos aqui para fazer mudanças. O judô é a ferramenta”, disse.  “Ter uma equipe de refugiados na Olimpíada do Brasil, no nosso desporto, faz com que aconteçam transformações. É muito bacana, fora de série, é um prêmio que estou ganhando por treinar eles”.

Com quatro Olimpíadas no currículo como técnico, Geraldo Bernardes treina a dupla do Congo

Fotos: Miriam Jeske/Brasil2016.gov.br


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